Sabemos o que defendemos e a quem defendemos
agosto 7, 2011 por Wagner Moura
Prof. Hermes Rodrigues Nery
Palestra proferida no II Seminário de Promoção e Defesa da Vida da Arquidiocese de Londrina – PR (em 9 de julho) e no Centro Schumann, em Belo Horizonte – MG (em 30 de julho), conteúdo este também publicado na edição de agosto/2011 na revista Catolicismo, em forma de entrevista.
A Igreja — provada por 2.000 anos — sustenta uma verdade de amor que supera todos os equívocos da História; os enganos ideológicos que são como o “psiu” da serpente, que prometem a panacéia utópica de realidades temporais, a qual se transforma em pesadelos totalitários e inumanos. Daí a “pérola da verdade” que a Igreja mantém como sã doutrina que permanece rocha inconcussa, a confirmar o que Jesus assegurou a Pedro: “As portas do inferno não prevalecerão”. Mas esta convicção requer de nós pôr a mão no arado, carregar a cruz e seguir Nosso Senhor Jesus Cristo. Daí o sentido da missão evangelizadora ser cada vez mais exigente, em meio a tantos desafios.
Gostaria de dizer como Chesterton: “Sou o homem que — com grande ousadia — descobriu apenas o que havia sido descoberto antes: a Igreja é o caminho seguro da salvação”. É o que a experiência mostra com fartos exemplos do cotidiano. “Fora da Igreja não há salvação!” Isso é de uma tão grande atualidade, que nos fortalece quando nos vemos na tempestade da pós-modernidade. E quando o barco em que estamos parece não dar conta de tão grandes ondas adversas, ouvimos a voz de Jesus — que anda sobre as águas e acalma o mar — a nos dizer repetidas vezes: “Não tenham medo!”.
O maior desafio é não se deixar levar pela correnteza daqueles que querem banir Deus do horizonte da História. E agora — mais do que nunca — é hora de reconhecermos que precisamos de Deus. Por isso rezamos e trabalhamos, para nos mantermos vinculados a Ele (daí o sentido da religião – re ligare), pois é este vínculo com o Altíssimo que irá garantir a vida eterna. Esta é a vida que nos interessa: a vida verdadeira.
O apelo pela defesa da vida foi feito pelo papa João Paulo II, em sua memorável encíclica Evangelium Vitae. A defesa da vida, portanto, é hoje prioridade na missão evangelizadora, para que a vida digna seja condição para a vida plena na eternidade. É nesse campo que sopra mais forte o Espírito Santo, a exigir de nós uma atuação coerente com o Evangelho. A Evangelium Vitae é profética porque denunciou as novas ameaças à vida humana e as hostilidades contra a instituição familiar (e também contra a Igreja), demonstrando que tais ataques – cada vez mais intensos – não são espontâneos, mas planejados e sistematizados por poderosas forças culturais, políticas e econômicas, que têm como objetivo minar a sã doutrina católica, para relativizar e banalizar cada vez mais o sentido e o valor da vida, vulnerabilizando a pessoa humana a condições indignas de existência. Tais ataques fragilizaram a vida humana de modo especial na fase nascente (com a tragédia do aborto) e no seu ocaso (com a eutanásia), dentro de um contexto político que o próprio papa chamou de “conjura contra a vida”, em que forças ideológicas vão impondo estilos suicidas que se voltam contra o ser humano, agrilhoando-o a falsas necessidades e perversas ilusões.
A Igreja quer vida para todos
Há um embate que o papa chamou de “cultura da morte x cultura da vida”, em uma “guerra dos poderosos contra os débeis”. Realidade esta tão bem documentada e elucidada, por exemplo, por Edwin Black, em seu livro “A Guerra contra os Fracos – A eugenia e a campanha norte-americana para criar uma raça superior”. Os mesmos institutos e fundações norte-americanos que naquela época investiram nas pesquisas nazistas por uma “higiene racial” da espécie humana, (recorrendo às esterilizações), são as que hoje promovem o aborto e a eutanásia, no Brasil e no mundo. Através da permissividade legislativa, os poderes constituídos vêm aprovando leis contra a vida: descriminalizando o aborto, autorizando a eutanásia, permitindo o uso de embriões humanos em pesquisas científicas, ferindo a dignidade sacramental do matrimônio ao legitimar uniões do mesmo sexo, com o direito de adoção de crianças, negando assim o direito à criança da insubstituível e imprescindível paternidade e maternidade, indispensável à formação integral da pessoa humana. Por isso a Evangelium Vitae buscou sensibilizar os governantes e legisladores não apenas a elaborar e aprovar leis em favor da vida, como a sociedade de um modo geral a colocar-se ao lado da vida, na defesa do nascituro, do portador de necessidade especial, dos idosos, enfim, dos mais fragilizados do mundo, pois o que a Igreja quer é a vida para todos.
A Igreja sofre com tudo isso, daí ser imprescindível a defesa da vida. Mas, afinal, que forças ideológicas são estas que formam o que a Evangelium Vitae chamou de “cultura da morte”? A Igreja não apenas sofre com tudo isso, mas é atingida por estas forças ideológicas, no que ela tem de mais sagrado. Há uma sutil estratégia, no intuito de tentar corroer inclusive por dentro da instituição, os seus princípios e valores, com uma metodologia muito sofisticada: descaracterizando conceitos, dando outro sentido e significado àquilo que a Igreja sempre anunciou como valor de vida, relativizando e debilitando a moral cristã, para viabilizar a aceitação de um ideário inteiramente anárquico. São forças antigas, antiqüíssimas, que já atuavam desde os primórdios da Igreja (a começar pela gnose), e que agora encontram na tecnologia e nos tantos meios de manipulação dos mass media, armas mais possantes visando atingir os alicerces da Igreja, numa somatória de esforços, com investidas luciferinas, com o propósito de destruir a fé cristã. De todas as religiões, é a doutrina católica apostólica romana a que se quer mais atingir. Estas forças ideológicas (o laicismo de raízes maçônicas e também anarquistas, o ateísmo agressivo, o fundamentalismo ambiental, o feminismo radical, o cientificismo huxleano, etc.) têm sido difundidas e sustentadas por instituições, organismos sociais e empresas, com vasta ramificação em todo o planeta, direcionando seus dardos principalmente contra a Igreja Católica.
Na história recente, depois da Segunda Guerra Mundial, estas forças se intensificaram e passaram a atuar de modo mais sistematizado. Desde 1952, em departamentos da ONU, com o apoio crescente de grandes fundações internacionais (Rockefeller, Ford, entre outras) foi se estruturando no interior de muitas instituições, principalmente no meio universitário e das comunicações, e governos, um anticatolicismo, que superou o anticlericalismo do passado, pois agora é a doutrina moral católica que está seriamente ameaçada. “A perspectiva católica é um bom lugar para começar, tanto em termos filosóficos, sociológicos como teológicos, porque a posição católica é a mais desenvolvida – afirmou Frances Kissling, a fundadora da OnG “Católicas pelo Direito de Decidir” – que é católica só no nome, para confundir – Assim, se você puder refutar a posição católica, você refutou todas as demais. Se você derrubar a posição católica, você ganha”. Enfatizou a líder feminista. O próprio Rockefeller tentou persuadir o papa Paulo VI a “flexibilizar” a moral católica na Humanae Vitae, especialmente na questão do aborto. Até então havia muito investimento em contraceptivos. Mas Paulo VI, a exemplo do que faz hoje Bento XVI, permaneceu fiel à sã doutrina, e foi odiado por tantos, inclusive por muitos até de dentro da Igreja, pelo Santo Padre ter se posicionado com coerência, e ter tomado a difícil, mas necessária decisão da fidelidade ao Magistério da Igreja.
Logo depois, Rockefeller, em meados de 1974, mudou de estratégia: aderiu ao feminismo radical para disseminar a ideologia de gênero para, aos poucos, ir minando na base, a doutrina católica, especialmente no campo da sexualidade. Todos os investimentos passaram a ser feitos em OnGs, publicações, eventos, propaganda televisiva, flexibilização legislativa, e todo este rolo compressor midiático de apologia ao homossexualismo, à liberação do aborto, das drogas, da prostituição, etc. Sabiam que este seria mais um passo em uma profunda revolução, no âmbito da cultura e da moral, que poderia levar mais de 30 anos, mas houve planejamento, monitoramento, estratégia de manipulação e persistência, para moldar (através dos meios de comunicação), a nova geração a ser receptiva a uma nova mentalidade (contraceptiva, antinatalista, moralmente permissiva e anti-cristã). Esse é o pano de fundo histórico e cultural dos temas abordados corajosamente pela Evangelium Vitae. “Esta situação dramática do mundo – explica o Catecismo (409), – que ‘o mundo inteiro está sob o poder do Maligno ‘ (1Jo 5, 19), faz da vida do homem um combate: uma luta árdua contra o poder das trevas perpassa a história universal da humanidade”. E ressalta que “inserido nesta batalha, o homem deve lutar sempre para aderir ao bem; não consegue alcançar a unidade interior senão com grandes labutas e o auxílio da graça de Deus”.
O apelo lançado pela Evangelium Vitae pela defesa da vida deve mobilizar a sociedade nesta nova frente de batalha (e rogamos a intercessão de São Miguel Arcanjo!), pois vemos que os ataques contra a vida e a família, são também ataques contra a Igreja. Mas é promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo de que ela não será inteiramente combalida. O próprio Catecismo afirma que “a consumação da Igreja e, através dela, a do mundo, na glória, não acontecerá sem grandes provações” (CIC, 769). É promessa de Jesus: “quem perseverar até o fim, será salvo!” (Mt 10, 22)
O holocausto silencioso do aborto: ponta do iceberg
A questão do aborto é a ponta do iceberg. Há um holocausto silencioso, vitimando milhares de seres humanos, a cada dia, em todas as partes do planeta; vidas ceifadas ainda no ventre materno, do modo mais cruento e doloroso, pois o inimigo de Deus tem sede do sangue inocente. “Estamos todos na realidade presos pelas potências que de um modo anônimo nos manipulam”, afirmou Joseph Ratzinger em seu livro “Jesus de Nazaré”. Essas potências que atuam “de modo anônimo” têm expressão nos centros privados do poder, nas grandes fundações (como as Organizações Rockfeller, a Ford, a MacArthur, a Buffet, a Gates, a IPPF, a Bemfam, o IPAS), na vasta rede de OnGs feministas que defendem os direitos sexuais e reprodutivos, em agências da ONU, etc., que querem “construir o mundo de um modo autônomo, sem Deus”; daí a obsessão pela manipulação da vida, com as possibilidades inquietantes em decorrência dos avanços biotecnológicos. Depois da obsessão por uma libertação que primeiramente se expressou por uma utopia social, agora quer se chegar a uma libertação mais profunda, contra até mesmo as condições biológicas do ser humano. “Aqui se ultrapassou, por assim dizer, a teologia da libertação política com uma antropológica”, explicou Ratzinger, em sua obra “O Sal da Terra”. Tais forças de poder atuam no esforço de um desmonte das estruturas civilizacionais do direito natural, e na arquitetura de uma engenharia social, tecnicamente planejada para um completo domínio da vida. O controle populacional faz parte desta estratégia. O aborto, portanto, é um aspecto sombrio desta terrível realidade que o papa chamou de “cultura da morte”.
No Brasil, todas estas ideologias estão contidas no Plano Nacional de Direitos Humanos – PNDH3, que causou assombro e perplexidade entre vários setores da sociedade, quando foi lançado pelo governo federal, em dezembro de 2009. O fato é que com o PNDH3, direitos humanos se transformam em palavra-de-ordem para justificar uma nova mentalidade e ordem mundial inteiramente amoral, em que a pessoa deixa de ser sujeito para se tornar objeto, destituída de humanidade, sem proteção e promoção, anulada em sua identidade e vítima de reducionismos aviltantes, em graus diferenciados de manipulação, que é a pior de todas as violências. Por isso a Igreja se posiciona em favor da vida, como fez valentemente Dom Luiz Gonzaga Bergonzini, bispo de Guarulhos, durante a campanha presidencial de 2010, denunciando o governo federal de estar comprometido com estas ideologias do mal, tão evidentes no PNDH3. Desde a publicação da Evangelium Vitae, tem havido iniciativas nesse sentido, em muitas partes do mundo. No Brasil, após a aprovação da Lei de Biossegurança (em março de 2005) esta mobilização vem crescendo. Tem surgido em várias dioceses, comissões diocesanas em defesa da vida, grupos de estudos na área de bioética, movimentos de leigos comprometidos com o Evangelho da Vida.
Na Diocese de Taubaté, o nosso bispo Dom Carmo João Rhoden fundou, em 28 de outubro de 2005, o Movimento Legislação e Vida, que coordeno junto com o Pe. Ethewaldo Naufal L. Júnior, e também a comissão diocesana em defesa da vida. Realizamos vários seminários de bioética e um Congresso Internacional em Defesa da Vida, no Santuário de Nossa Senhora da Conceição Aparecida (em fevereiro de 2008). Desde então, junto com outras comissões diocesanas e demais grupos (como o Movimento Nacional da Cidadania pela Vida – Brasil Sem Aborto, que é suprapartidário e suprareligioso), estamos acompanhando em Brasília, os projetos de lei relacionados a vida e família que tramitam nas comissões do Congresso Nacional, bem como as deliberações no Supremo Tribunal Federal (como a ADIN 3510, a ADPF 54 e outras). Com um trabalho coordenado e integrado, temos conseguido importantes vitórias no campo legislativo. Em maio de 2008, por 33 x 0 o PL 1135/91, visando despenalizar o aborto no Brasil, foi rejeitado na Comissão de Seguridade Social e Família e também posteriormente pela Comissão de Constituição e Justiça. Promulgamos ainda no período em fui presidente da Câmara Municipal de São Bento do Sapucaí (2009-2010), a primeira lei orgânica pró-vida do País, incluindo no texto constitucional local o direito a vida desde a fecundação até a morte natural, com diretrizes do humanismo integral, destacando que o direito a vida é o primeiro e o principal de todos os direitos humanos.
A nossa Diocese também lançou, em novembro do ano passado a Campanha “São Paulo pela Vida”, que conta hoje com o apoio da Comissão Regional em Defesa da Vida do Regional Sul 1 da CNBB. Esperamos através da iniciativa popular obter mais de 300 mil assinaturas para inserir na constituição do Estado de São Paulo o direito a vida desde a fecundação. Em nível federal, propomos ainda no 4º Encontro Brasileiro de Legisladores e Governantes pela Vida, no começo deste ano, que os deputados federais da Frente Parlamentar Mista em Defesa da Vida trabalhem pela aprovação da PEC pela Vida, para através de emenda constitucional garantir o direito a vida de modo integral. O que já foi feito em nível municipal, esperamos conseguir em âmbito estadual e, se Deus quiser, também nacional. Nesse sentido, há ainda esforços pela aprovação do Estatuto do Nascituro. Todas estas iniciativas mostram que a Igreja está viva e atuante, apesar das tantas dificuldades existentes. O nosso trabalho em nível diocesano é feito em comunhão eclesial, com o Bispo, o padre assessor e os leigos. E também integrado a outros grupos que trabalham nesse sentido, pois diz o Catecismo claramente que “a missão de Cristo e do Espírito Santo realiza-se na Igreja” (CIC, 737). Superando os problemas, vamos buscando – fiéis ao Magistério da Igreja – estarmos mais disponíveis à graça de Deus, pois é Ele quem opera.
S. Afonso de Ligório é enfático em dizer que a oração deve preceder a ação, para estabelecer o vínculo perfeito que propicie a abundância das graças, que somente Deus pode oferecer a quem a Ele recorrer sinceramente. É o lema de São Bento “ora et labora” que atualiza a pedagogia de Deus no mistério da Igreja, orante e militante, na defesa da vida humana, de modo integral, na dimensão soteriológica, com a perspectiva para a realidade última; pois a vida definitiva depende desta provisória, das nossas decisões e adesões que fazemos no dia-a-dia. E então somos levados a refletir: sobre que lastro construímos a nossa história? Nesse sentido, a Igreja confirma Jesus Cristo como “caminho, verdade e vida”, e é esta vida que defendemos: a vida nova proposta por Jesus, que começa aqui a ser edificada. Daí o imperativo bíblico tão atual: “Escolhe, pois, a Vida!”.